# 44 - "Uma outra história da filosofia"
Seria bom conversar com o Albano, por exemplo, sobre essas teses do Habermas.
Em 2001, um mês depois do 11 de Setembro, Habermas fez um discurso intitulado “Fé e Saber”, por ocasião de um prêmio que recebeu dos livreiros da Alemanha. Um dos temas foi a relação entre as tendências naturalizantes na filosofia, com a consequente propagação de imagens de mundo inspiradas nas ciências, e as tendências de revitalização e politização das comunidades e tradições religiosas. Quanto à primeira tendência, ele fez uma crítica das “naturalizações do espírito”; quanto à segunda, ele esboça um reconhecimento do fato que a filosofia nutre-se delas (das tradições religiosas), em algum sentido. Quem conhece a história do direito não estranha isso nem um pouco. Conceitos como “pessoa” e “autonomia”, por exemplo, são incompreensíveis para o naturalismo, e devem sua gênese a um momento histórico no qual o papel das grandes religiões mundiais é decisivo. Ele esboça na palestra um programa de trabalho de reavaliação da história de conceitos que foram forjados entre o altar e a taça de cicuta. A história da filosofia fica mal contada quando é resumida na luta entre o Esclarecimento Filosófico e a Ilusão Mítico-Religiosa.
A palestra foi publicada no Brasil pela Editora Unesp, 2012, com o título Fé e Saber, traduzida pelo Fernando Costa Mattos.
Poucos depois da palestra de 2011, já jubilado, ele voltou ao tema das relações entre fé e saber, Glauber und Wissen. Trabalhou nisso durante dez anos. Em 2022 o livro foi publicado na Alemanha nas edições de bolso da Suhrkamp, em dois volumes, num total de mais de 1.800 páginas.n O título geral é Auch eine Geschichte der Philosophie. O primeiro volume tem como título Die okzidentale Konstellation von Glauben und Wissen, e o segundo, Vernunftige Freiheit. Spuren des Diskurses uber Glauben und Wissen.
No apagar das luzes de 2023 a Fundação Calouste Gulbenkian entregou uma tradução do primeiro volume, feita por José Lamego, jurista e professor de direito. O livro somente começou a circular em Portugal neste ano, e tanto quanto sei, não está disponível ainda no Brasil, tampouco ainda é comercializado internacionalmente. Para conseguir um exemplar precisei da bondade de várias pessoas por lá.
Como me disse o Professor Stein, que também está a voltas com o livro, é um grande livro, não apenas no tamanho. Somente alguém como ele para levar adiante um projeto como esse, que depende, em sua execução, de uma sensibilidade e de ferramentas que pouca gente tem. Para mim, a grande novidade, que é a minha motivação especial para ler o primeiro volume, é a dedicação que ele deu a um tema que me interessa muito. Faz já alguns anos que eu leio e releio um livro de Jaspers, Origem e Meta da História (Von Ursprung und Ziel der Geschichte), de 1949. É nesse livro que ele expõe o tema da Era Axial. O livro teve muito impacto na época. Foi publicado em espanhol em 1951. Um dos seus leitores brasileiros foi Paulo Freire que, curiosamente, não se interessou pelo conceito de “era axial” e sim pelo conceito de “diálogo”. Veja, sobre isso, Educação como Prática de Liberdade. Enfim, só para mostrar como Jaspers foi um dia valorizado no Brasil, basta lembrar que o ISEB publicou dele Razão e Anti-Razão em Nosso Tempo, em 1958; o livro desagradou a ala esquerda do ISEB, claro, pois há ali muitas críticas ao marxismo; e há também o tema da “era axial”.
Eu voltei recentemente a Jaspers, em função do livro que estou escrevendo para a Editora Contexto, precisamente ao tema da era axial. Eu já tratei desse tema no meu Filosofia da Educação, e queria aprofundar a discussão do conceito de “espírito”. Foi nessa lida que eu descobri que Habermas, nesse novo livro, dedica umas 300 páginas à discussão da era axial, como parte decisiva do projeto “Fé e Saber”. A leitura está sendo muito proveitosa, porque, como seria de esperar, ele faz uma revisão de literatura muito completa, da qual estou tirando muito proveito. Desde os anos 1960 houve muito avanço nos estudos de história da religião, dos quais eu não tinha conhecimento. Habermas está sendo um guia precioso nesses temas, e está me sugerindo perspectivas novas, que, por mais que eu conhecesse o livro de Jaspers, ainda não tinha percebido.
Bom, eu digo isso para os amigos (penso aqui no Rogério Severo, por exemplo, que se interessa por tema de filosofia da religião) que um dia se interessaram, ou por Habermas, ou que desconfiam de uma história da filosofia na qual ela triunfa sobre os mitos, as tradições e a religiosidade: o livro vale a pena. É um texto duro, com parágrafos longos, letrinha miúda, cansativa. Mas vale muito a pena. Se o cara comprou tudo o que era do Habermas e não vai ler esse, a coisa vai ficar meio incompleta. Leio o livro e penso no Albano Pepe, que era um leitor apaixonado do Habermas, tinha tudo dele. Seria maravilhoso ter ele por aqui para a gente conversar sobre mais essa treta do Habermas.
Vou procurar ler! A tese dos 9 volumes dos meus Assassinos do sol (cinco publicados, até Kant; o resto esperando grana depois da razzia bolsonarista contra as universidades, que bombardeou suas editoras) é justamente a de que a nossa história ocidental “em sentido próprio” começa no sec I, quando da fusão mega tensa da tradição grega do Ser, da razão e da filosofia com a tradição judaica de Deus, da fé e da religião em território de latinidade. E daí decorreu um acordo de dispares que durou 13 seculos, até o XIII de Sto Tomás e dos “averroistas latinos”, 13 sobre os 26 da história da filosofia! É uma enormidade. E teve sequência nos modernos (espaço público /esfera privada), Kant (a religião natural chamada para junto da razão para dar fundamento à vontade que ancora o ato moral livre), até os nossos dias óbvios quanto s essa relação. Não sei se consigo encarar essa leitura, mas vou tentar.
Oi Ronai! Não pude deixar de me perguntar se nessa outra história aí tem espaço para as concepções de religião e de filosofia pensadas e praticadas pelas excluídas da história canônica: nos, mulheres. Pois justamente um problemão que as tentativas de reescrita dos cânones possuem é o de integrar escritos de pessoas que não participavam das instituições das quais a gente sabe serem os lugares de onde sai a filosofia. Isso passa também, por óbvio, pela questão dos tipos de texto que são lidos e/ou revisitados para a refazenda das histórias. Estou lendo o livro do Octavio Paz sobre Sor Juana, então perdoa se a questão não tem nada a ver com o teu sorvete!